23 de abril de 2021

25 Abril - Poema de Carlos Gaspar

 25 Abril


E ao chegar o alvorecer
a liberdade chegou crua
ouvi latas a bater
toda a gente veio para a rua.
E dos olhos das mulheres
caíam lágrimas contidas
por saírem das prisões
homens de cabeça erguida.
E em Peniche e em aljube
serraram-se as grilhetas e as grades
abriram-se, portas e cadeados
saíram homens renascidos das suas verdades.
A liberdade tantos anos calada
numa agonia de sufocar
soltou-se como o vento
e os homens puderam cantar e gritar
E ao chegar o alvorecer
a liberdade chegou crua
ouvi latas a bater
toda a gente veio para a rua.


Insónia - Poema de Carlos Gaspar

 Insónia


Acordado…
Duas da madrugada
cristais orvalho na roseira
amantes à lareira
lua cheia
mar revolto
a alma se incendeia.
Insónia
…fadiga, pensamento na viela
estreita rua, cão abandonado
lar desfeito, pensamento amargurado.
Filho prodígio; filho descalço
desperdício, percalço
fome, fartura, abandono
rebelião, resignação
guerra, paz
sentido destemido
quero engolir
peço desculpa
não sou capaz!
Insónia, pensamento
verdade, mentira
meia verdade, ocultação
sentido invertido
sentimento da razão.

Bombardeamentos, chaimites
balas, bombas
liberdades perseguidas
almas infligidas,
…ditaduras!
- Leis! Só para quem as faz
quero engolir
peço desculpa
não sou capaz!
Cravos
palavras de ordem
manifestação, avenida
bandeira rubra
sentimento da razão.
Xenófobo, racista
cidade, continente
fado imposto
imigração
escravatura, perseguição.

Falsas beatas, padres,
acomodados dos sofás
rezam, rezam
e Deus nada lhes trás,
quero engolir
peço desculpa
não sou capaz!

Ateu! Eu?!
- Não!

Laico, agnóstico, comunista
pinta da rua, frick, punk
anarquista,
vida de trabalho, desempregado
carteirista,
carpinteiro, maquinista
bombeiro, médico…
- Político fascista ?!
- Não !!
Operário progressista!

II

Insónia
três da madrugada
bombeiro de serviço
…incêndio,
cão latindo na viela
sirene gritante
labareda flamejante
almas em desalento.
Fagulha dos amantes?!
cigarro mal apagado?!
curto-circuito, fuga de gás
causas prováveis do incêndio
ao bombeiro tanto lhe faz
- Está de serviço!
O bairro acordou
com o cão a latir
as sirenes a tocar
as mães a chorar
os amantes nus na rua
o bombeiro cansado
o médico acordado
a enfermeira entra no turno as quatro!
Pensava eu
que apenas eu, estava acordado.

III

Amanhece!
alvorada!
o incêndio está extinto
Azáfamas, levantam-se
…trânsito, semáforos
escapes, buzinas
autocarros, cacilheiros
rotinas…
Rotinas de cansaço
Cacilhas, terreiro do paço
Metro, chiado
sete rios, areeiro
- Isto todos os dias!
Alvorada…
o ateu converteu-se
o desempregado arranjou trabalho
o trabalhador foi despedido
o operário está em greve
o carteirista foi preso
o anarquista votou
o fascismo acabou
tudo isso mudou.
Insónia…
sonolência o dia inteiro
o cão calou-se
o médico foi para casa
o bombeiro já dorme
a enfermeira sai ao meio dia
os amantes vestiram-se
os putos estão na escola
tenho os olhos pesados
da insónia de todos os dias
a ver se hoje consigo dormir.

5 de abril de 2021

Cacilhas da Minha Memória II

Por: Edmundo dos Santos F

 

UMA FAMÍLIA MUSICAL

A geração seguinte, filhos da avó Cândida Rosa e do avô Ribeiro dos Santos ‑ o casal de entusiastas empreendedores cacilhenses, de que falei na publicação anterior ‑ foram uma rapariga, Delmira Mariana e um rapaz Aires Paulo…

 


A nossa mãe, Delmira Mariana, estudou na Escola de Belas Artes, pintura a óleo e baixo relevo, falava fluentemente francês, tocava piano e tocava órgão na Igreja Paroquial de Nossa Senhora do Bom Sucesso de Cacilhas. O seu irmão e nosso tio Aires Paulo, que foi quadro superior do Banco Espírito Santo, distinguiu-se também a cantar no naipe de tenor lírico.  

Contavam-nos que aos fins de semana a família se reunia para tardes musicais em que a mãe tocava piano ou órgão, o pai tocava viola ou ferrinhos, o tio Aires Paulo, o tenor, cantava, o avô António Ribeiro dos Santos tocava viola, a avó Cândida Rosa cantava em soprano e o Raúl, o primo da avó, tocava flauta e ocarina.  A nossa mãe dizia que no passeio em frente havia sempre ouvintes encantados que até aplaudiam este concerto familiar.

Provavelmente, devido a este sucesso, foram convidados a tocar e cantar no Jardim do Castelo, junto à Igreja Paroquial de Santiago, em Almada, graciosamente. Não sabemos durante quanto tempo duraram essas manifestações musicais.  Não tive o privilégio de desfrutar desses encontros. O nosso irmão Ildo, hoje com 90 anos, assistiu a eles e recorda o entusiasmo com que esses concertos eram recebidos por quantos se juntavam à volta do coreto.

Entre os ouvintes e apreciadores da música estava uma professora, a D. Margarida, proprietária do palacete do lado oriental do jardim do Castelo. Tendo estabelecido amizade com a minha mãe prontificou-se a preparar-nos em aulas particulares, a mim e ao meu irmão gémeo, Carlos, para as primeiras classes da instrução primária.

Mais tarde, viríamos a frequentar a Escola Primária Conde Ferreira na parte alta de Almada, junto ao Seminário.

Na fotografia vê-se o coreto, como hoje é e em fundo as ameias do castelo.

 O coreto na atualidade.

 
Haverá algum cacilhense que recorde aqueles momentos musicais e que queira participar nestas rememorações? Seria bem-vindo!