3 de fevereiro de 2023

“O Largo de Cacilhas”

 

O Bilhete Postal ilustrado que acima se apresenta, denominado “Vista Geral de Cacilhas” oferece-nos, em imagem fotográfica, uma perspectiva do “Largo de Cacilhas” e seu cais, como se apresentava aos olhos dos cacilhenses, no final do séc. XIX, e que assim se manteve até 1925/1926.

Baptizado popularmente por “Largo de Cacilhas” este local veio, a partir de 1910, a receber o topónimo de “Largo Costa Pinto”, em homenagem a Jaime Artur da Costa Pinto (1846-1909), personalidade que durante a sua vida exerceu altos cargos públicos entre os quais, Deputado por Almada e ainda como seu Presidente da Câmara. Durante o seu mandato realizou, quer em Cacilhas quer no Concelho de Almada, diversas obras que permitiram significativos melhoramentos e melhores serviços às populações locais.

Após a Revolução de Abril em 1974, verificou-se a alteração do topónimo, passando então a denominar-se por Largo “Alfredo Dinis (Alex)”, em homenagem ao cidadão operário dos estaleiros da Parry & Son, que sendo um lutador anti-fascista, no tempo de Estado Novo, veio a ser preso e assassinado pelo regime de então.

Porém, por força da tradição popular, o referido Largo é, ainda nos dias de hoje, designado como ”Largo de Cacilhas” e assim o iremos designar ao correr da escrita, neste nossa crónica que se oferece ao leitor.

Cacilhas, mercê da sua privilegiada situação geográfica localizada na margem esquerda do estuário do Tejo, frente a Lisboa, sempre foi considerada como o melhor porto natural da região de Almada, daí que tenha sido um dos locais de maior movimento de embarcações para transporte de mercadorias e de pessoas.

Referenciando-se como um dos locais mais antigos da denominada “Outra Banda”, Cacilhas remonta como povoado, desde tempos imemoriais, conforme se constata pelas descobertas arqueológicas de vestígios de habitação nómada, datadas da Idade do Ferro. Também por ali andaram os Fenícios e mais tarde os Romanos, tendo sido descobertas, aquando das obras no Largo de Cacilhas que ocorreram em 1981/1982, ruínas de Cetárias Romanas (tanques de salga de peixe), que remontam ao período do Império Romano (Séc. I).

Até meados do séc XIX, o “Sítio” de Cacilhas era habitado principalmente por uma comunidade de pescadores e camponeses, mas também por estivadores e grande número de carpinteiros e calafates, que quotidianamente atravessavam o rio para trabalharem na construção dos barcos em madeira, nos estaleiros da Ribeira das Naus em Lisboa.

Nesse tempo, o Largo de Cacilhas tinha a configuração de um amplo terreiro quadrangular em terra batida que, junto ao rio virado a Leste, formava uma enseada composta por um areal popularmente chamado de “Praia de Cacilhas”.

Sendo o seu areal de suave declive, permitia o fácil encalhe das embarcações ligeiras a remos e à vela (como os botes, as canoas e os catraios), então muito utilizadas para o transporte de pessoas, entre as duas margens do rio e ainda de pequenas embarcações de pesca no rio.

Nos meses de estio, era frequentada como praia de banhos, pelos moradores locais e, principalmente, pelo rapazio que por ali se refrescava e divertia.

Esta pequena enseada ficava enquadrada pelos os afloramentos rochosos então existentes no local designado por Pontal (lado sul) e pelo Pontaleto (lado norte).

Com o decorrer dos anos e já no início do séc. XIX, foi-se assistindo ao crescimento do comércio local e ao aumento da população residente, ao mesmo tempo que Cacilhas se foi tornando num importante entreposto comercial advindo, então, a necessidade de se realizarem obras de consolidação e melhoria das condições do seu cais.

Uma das primeiras obras verificadas no Largo de Cacilhas remonta aos anos 1819-1820, tendo-se construído no local do Pontaleto (aproveitando-se os diversos afloramentos rochosos ali existentes) um cais de pedra, em forma de cunha e virado a nascente, que terminava numa escadaria em declive suave, por águas do rio adentro (desde logo baptizada pelos cacilhenses, de “escadinha” ou “sapata”), de modo a permitir a acostagem de embarcações de maior calado, como as fragatas, os varinos e, mais tarde, os ”vapores”, que transportavam apenas passageiros entre as 2 margens.

As obras de consolidação do cais também se realizaram do lado do Pontal, onde foi construída uma muralha corrida para sustentação de terras e servindo de paredão “paredes-meias” com os terrenos pertencentes a Alexandre Black, onde existiam os grandes armazéns de carvão de pedra nos quais, a partir de 1866, foram construídas as “Docas do Sampaio” (estaleiro naval de “António José Sampaio”).

Posteriormente, aqueles estaleiros deram lugar aos estaleiros navais da “Parry & Son”, que já funcionavam no Ginjal.

Na primitiva praia, foi uns anos mais tarde, no meio da enseada sobre o areal, construída uma rampa de encalhe para embarcações ligeiras, conforme se pode ver no bilhete-postal que acima se apresenta.

Ao longo do séc XIX e até aos primórdios do séc. XX, o Largo de Cacilhas conheceu, aos fins-de-semana, grande movimentação por aqueles que ali chegavam provenientes de Lisboa ou de outros locais para participarem nos divertidos passeios de burro (as ”burricadas”), que então se realizavam a partir do Largo, pelas ruas de Cacilhas ou mais além.

Verificava-se, assim, uma animação característica no Largo e o consequente crescendo de negócio da restauração e comércio local.

Em 1890, é demolida parte da esplanada do Forte de Santa Luzia, com a finalidade de permitir o aumento de espaço e melhores condições de acesso ao Ginjal e cais de embarque de passageiros, então denominado por “Ponte” e mais tarde, a partir de 1900 (após remodelado e ampliado), por “Parceria”, com o aparecimento da empresa “Parceria dos Vapores Lisbonenses”, que veio permitir um maior número de carreiras regulares diárias, entre as 2 margens do rio.

Por outro lado, à medida que os transportes por tracção animal iam sendo substituídos por veículos motorizados (apareceram então as populares camionetas de transporte de passageiros e de mercadorias), ao mesmo tempo que em Lisboa era crescente a oferta de emprego no sector do comércio (dando trabalho a muitos moradores da margem Sul), iam-se multiplicando, em Cacilhas, as casas de comes e bebes (tascas, tabernas casas de pasto e retiros). Surgiam também, a partir da década de 30, os primeiros grandes restaurantes ao longo do Cais do Ginjal (muito procurados sobretudo aos fins de semana, pelos “Lisboetas”, para apreciarem as famosas “caldeiradas do Ginjal”). O Largo de Cacilhas foi-se tornando pequeno para as necessidades diárias da sua ocupação e uso, o que levou a que, no limiar da década de 30, se viessem a realizar as primeiras obras para a sua ampliação no sentido Leste, roubando terras ao rio.

Acompanhando o crescente desenvolvimento económico da região, 10 anos depois e já em meados da década de 40, ocorreram novas obras no Largo de Cacilhas, em continuidade das anteriormente realizadas, o que constituiu a sua 2ª fase de expansão.

E, como diz o povo, “não há duas, sem três…”. Passada uma década, já nos anos 50, procedeu-se à 3ª fase de expansão do Largo, como corolário da abertura a partir do local onde existiram as casas no Sítio da Lapa (que para o efeito foram demolidas), da Estrada Nacional de Cacilhas (hoje Avenida MFA), que se estendia até á Cova da Piedade e localidades seguintes.

Estas obras tornaram-se necessárias em virtude do continuado crescimento urbano e do aumento de tráfego de transportes de passageiros, de e para o Largo de Cacilhas.

As obras de expansão do Largo, após concluídas, proporcionaram novos espaços para terminal de camionagem, praça de táxis e outras infraestruturas, assim como uma configuração mais desafogada, que perdurou até aos anos recentes.

Pelo Largo de Cacilhas, ao longo dos anos, ocorreram manifestações, comemorações e acontecimentos, repartidos entre momentos alegres e outros tristes, presenciados por grande número de cacilhenses.

Nele se juntou o povo, aquando da inauguração, em 1 de Novembro de 1874, do Chafariz de Cacilhas (mandado construir por Bernardo Francisco da Costa, então Presidente da C.M.Almada) e, também em 1886, comemorando e aplaudindo a inauguração do “Farol de Cacilhas”, o qual veio a tornar-se o símbolo maior do povo cacilhense.

Uma imensa multidão ocupou de novo o Largo de Cacilhas assistindo, junto à “Parceria”, ao desembarque em Março de 1911, do então Ministro da Justiça, Afonso Costa, em visita à Quinta do Rosal no Monte da Caparica, que até à queda da monarquia, pertencia aos Jesuítas.

Em 10 de Outubro de 1925, o Largo de Cacilhas torna a encher-se de povo, aquando do início da 1ª etapa da 1º Volta a Portugal a Cavalo, organizada pelos jornais Diário de Notícias e Sports.

Muitos curiosos estiveram também presentes quando o Largo de Cacilhas, em 23 de Abril de 1927, foi ponto de partida simbólico da 1ª Volta a Portugal em Bicicleta (das primeiras 10 voltas a Portugal, 8 tiveram início em Cacilhas). Na verdade, a 1ª etapa tinha início oficial na Cova da Piedade, terminando em Setúbal.

Ainda no ano de 1927, a 12 de Setembro, a população de Cacilhas e em particular todos os “Ginasistas” acolheram em delírio, com foguetes, abraços, fanfarra e tudo o mais, a equipa de remo do Ginásio Clube do Sul, no total de 9 elementos, que na véspera na Figueira da Foz, numa organização local do Clube Naval 1º de Maio tinha, briosamente, ganho a prova de remo dos 2000 metros, o que permitiu, naquele ano, que o Ginásio Clube do Sul, se sagrasse campeão nacional de Remo!

Em 1929, Cacilhas volta a encher-se de curiosos, por ter sido escolhida como ponto de chegada de uma etapa do Rally de Monte Carlo que, na época, já tinha prestígio e fama mundial.

Outro momento alto ocorreu no Largo, em 12 de Outubro de 1941, aquando da recepção da esposa e familiares do então Presidente da República, Óscar Carmona, vindos de Lisboa para apadrinharem a entrega de novos equipamentos aos BVCacilhas.

Desde o terramoto de 1755 até aos dias de hoje, muito povo ainda se junta no Largo, em cada primeiro dia de Novembro, assistindo à procissão em honra de Nossa Senhora do Bom Sucesso que, percorrendo as ruas de Cacilhas, acaba levando o andor com a Santa Padroeira até junto ao rio, para a bênção das suas águas.

Mas o povo cacilhense também sentiu momentos de aflição e de incertezas quando as Guerras Liberais tiveram o seu epílogo em 23 de Julho de 1833, na batalha final ocorrida no Largo da Cova da Piedade, tendo sido vencedoras as tropas liberais do Duque da Terceira e tendo como resultado a fuga desordenada para Cacilhas das tropas Miguelistas, perseguidas de perto pelas tropas vencedoras.

Em Cacilhas, perante enorme confusão, os Miguelistas procuravam fugir por barco para Lisboa. Muitos, não o conseguindo, ficaram prisioneiros ou morreram às mãos das tropas vitoriosas, acabando mesmo o seu comandante, General Teles Jordão, por ser assassinado e ali mesmo enterrado, quando em plena praia de Cacilhas, procurava embarcar para Lisboa.

Consternação e silêncio viveram ainda os cacilhenses assistindo, em 2 de Fevereiro de 1926, ao desfilar no Largo de Cacilhas, dos revolucionários republicanos radicais que revoltando-se, foram presos pelas tropas da GNR e embarcados para Lisboa. Oito anos mais tarde, em 18 de Janeiro de 1934, assistiu-se ao embarque, com posterior destino até à fortaleza de S. João Baptista em Angra do Heroísmo, dos operários corticeiros presos (em solidariedade com os operários revoltosos da Marinha Grande), por manifestarem a sua revolta contra o Estado Novo e lutarem pelos seus direitos de liberdade e cidadania.

Já mais recentemente, o Largo de Cacilhas sofreu profundas obras de adaptação para a implantação de um terminal de partidas e chegadas do MST-Metro Sul do Tejo, que foi inaugurado em 26 Novembro 2008, bem como obras de remodelação, no sentido de virem a permitir uma maior fluidez de acessos na circulação de transportes rodoviários, de passageiros e particulares.

O Tempo passa e avança, o Largo de Cacilhas modernizou-se e adaptou-se aos desafios do futuro.

Do velho Largo fica apenas, no registo da memória de alguns e também na escrita de outros, o respeito e a saudade daqueles que por lá passaram, viveram ou não mais voltaram.

 

Luís Filipe Bayó Veiga

 

Fontes:

  • ALVES, Eduardo - Cacilhas dos Tempos Idos: Recordações do Passado dedicadas ao Presente.(s.l; s.n) – (1984)
  • BARÃO, Fernando e MILHEIRO, Luís – Cacilhas – A Gastronomia, a Pesca e as Tradições Locais – Junta de Freguesia de Cacilhas e SCALA-Sociedade Cultural de Artes e Letras de Almada, Almada, 2007
  • FLORES, Alexandre,M - Almada Antiga e Moderna. Roteiro Iconográfico  -Vol. II – Freguesia de Cacilhas, CMA, Almada, 1987
  • LOURENÇO, Diamantino – Cacilhas – Ponto de Partidas, Local de Passagem

Junta de Freguesia de Cacilhas e SCALA-Sociedade Cultural de Artes e Letras de Almada, Almada, Dezº 2008

  • VEIGA, Luis Filipe Bayó – Arquivo pessoal

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