22 de dezembro de 2011

"PASSOS MAL E BEM DADOS", de Alexandre Castanheira


O Professor Alexandre Castanheira, nosso amigo, Comendador da Ordem da Liberdade da República Portuguesa e um dos intelectuais e associativistas de referência do Concelho de Almada, esteve presente no lançamento do livro “ Crónicas d'agora sobre Cacilhas d'outrora”, da autoria de Luís Filipe Bayó Veiga. Associou-se  ao evento declamando o poema inédito de sua autoria: PASSOS MAL E BEM DADOS, que ofereceu ao autor para divulgação.


 
PASSOS MAL E BEM DADOS

Passos…
Oiço passos!
Alguém passa
que reconheço ao passar.
Sendo já passado,
afigura-se-me bem presente,
ao passar jovial e compenetrado
por este Largo
hoje tão diferente dos tempos
em que passava a caminho da Parry…

Passou,
como passavam tantos
que o estaleiro albergava,
e um dia deixou de acolher
-ele próprio já passado
mas com lugar cativo
na história da construção naval-.
Ei-lo de novo presente
sem a azáfama dos sabedores operários
mas com herdeiros de antigos marinheiros
que se recusam a ser esquecidos…
E resolveram aproar à história de Cacilhas,
qual maravilhosa ilha descoberta
como nos tempos do glorioso passado.

Naquela degradada doca esvaziada,
uma nobre e bela fragata
(para mim formosa caravela do passado).
Não há ondas, vagas alterosas,
o verde rio-mar é chão e dócil.
Até ali chega o forte cheiro do sal do Oceano
 perfumando de heroicidades passadas
este estranho e terrivelmente doloroso presente
de uma nau destinada à liberdade
ali amarrada, encurralada
entre quatro altas paredes
onde nunca desfraldarão as velas
com a prometedora cruz de Cristo,
nem mesmo quando o vento
oriundo das bandas da barra do Tejo
sopra afanosa e insistentemente os mastros nus;
aqueles de onde os jovens navegantes
(cansados, quando não aterrorizados
pelas inúmeras tremendas e súbitas tempestades)
perscrutavam formosas e cantantes sereias,
quantas vezes imaginadas em sonhos com o rosto
das belas aldeãs suas namoradas
que, no meio do aterrador oceano,
 temiam não voltar a abraçar…

Passado quinhentista:
Semeado de jovens corpos de rapazes
Arrancados à diária labuta agrícola
Das suas pequenas e pobres aldeias
E depois sepultados nas frias águas
em que tantas vezes soçobravam
As frágeis naus onde perdiam nome,
Que esse apenas era o que as narrativas
Guardaram para sempre,
Almirantes com nome, cargo e descobertas feitas.
Quanto à arraia miúda,
ah! Os pobres! Não faziam ideia de que iam preencher
de lúgubre silêncio as dramáticas páginas
da nossa epopeia trágico-marítima!

Neste vergonhoso tempo de desmemória,
Herdámos ao menos o modesto nome de Alex,
Herói de outra história trágico-política,
Gravado em placas hoje quase escondidas,
Ou desaparecidas, tal como as paredes,
da inesquecível Parry do ganha-pão
e dos homens vigorosos e combativos
que lutaram lado-a-lado com Alfredo Dinis
por uma vida melhor e mais feliz.

Eles – anónimos como os homens
que enchiam o porão e o convés
das naus das descobertas –
lutaram contra o silêncio imposto
pelos habituais e demoníacos destruidores
dos inalienáveis construtores de um futuro
de paz, de progresso, de bem estar e amor.
Esses que fizeram regressar
de vermelho vivo vestido
o farol sonegado em tempos
aos habitantes desta entrada de Almada,
cidade verde, cidade solidária
que não esquece nem deixa esquecer os filhos
dignos da memória e da sua terra querida.

Que mais lhe irá acontecer
não o sabemos, mas oiço os passos,
vejo (sim, é possível!) os homens de acção
a dar passos para transformar
o presente numa recusa total
aos que não amam Cacilhas e as suas gentes!

Cacilhas, 17 de Setembro de 2011

Alexandre Castanheira

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